Essa é a Käthe Kollwitz. Ela nasceu em um lugar que era Alemanha até 1945, quando passou a ser Rússia, mas Käthe tinha acabado de morrer quando isso aconteceu. Ela viveu a maior parte da vida em Berlim. Ela estudou arte com o estímulo da família e, mais tarde, do marido. Ela foi testemunha da Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Ela recebeu amplo reconhecimento pela sua arte em vida. Ela perdeu o filho mais novo para a Primeira Guerra e se converteu em uma ferrenha pacifista. Ela teve uma escultura de paz com o seu rosto, homenagem de Barlach, derretida pelos nazistas para a fabricação de armas. Ela desenhou, pintou e esculpiu sobre mães e filhos, guerra e paz, vida e morte, com simplicidade e intensidade. Ela retratou o ser mulher na Alemanha da fome, da dor, da miséria e da guerra. Ela foi ostracizada como artista pelo governo nazista. Ela tem um bairro em Berlim com o nome dela. Ela tem um museu em Berlim e outro em Colônia dedicados à vida e às obras dela. Ela morreu sem saber que uma réplica ampliada de uma das esculturas que ela fez em homenagem ao seu filho, “Mãe com o filho morto”, seria exibida como uma experiência compartilhada da dor diante da morte no Memorial às vítimas das guerras e das tiranias (Neue Wache) no centro de sua querida Berlim, uma cidade cicatrizada no século 21.
Neste Dia Internacional das Mulheres, quis contar a história da minha artista preferida, Käthe Kollwitz, que está entre os artistas mais importantes do século 20 na Alemanha.
O Dia das Mulheres pra mim é mais uma oportunidade de entender o que faz de nós mulheres e o que marca, historicamente, nossa experiência coletiva nesse mundo.
versão original, no museu Käthe Kollwitz em Berlim
réplica ampliada na Neue Wache (Memorial às vítimas das guerras e das tiranias”, em Berlim
A visita à Neue Wache e a apresentação de Käthe Kollwitz como artista mulher no contexto das duas grandes guerras fazem parte do tour histórico que ofereço pelo centro de Berlim. Fotos: Carmen Guerreiro
O Käthe Kollwitz Museum fica no Theaterbau am Schloss (construção no jardim do Palácio de Charlottenburg), Spandauer Damm 10, 14059 Berlin. A entrada padrão custa 7 euros, e é gratuita no primeiro domingo de cada mês.
Confira abaixo obras da Käthe Kollwitz expostas no museu.
“Torre de mães”
“Morte, mulher e criança”
“Favorecimento”
“Mães”
“Pão!”
“Atacar”
“Mulher com criança morta”
“Desemprego”
“Criança em acidente”
“Crianças alemãs estão passando fome!”
“Guerra nunca mais”
Todas as obras são de autoria de Käthe Kollwitz e estão expostas no museu de Berlim
Quem anda hoje pelo centro de Berlim (Mitte) vê diversos bondes, ou trams (ou ainda Straßenbahn) passando pra lá e pra cá
Indo para os bairros, fica clara uma diferença: onde antes era Berlim Oriental ainda se usa o sistema de bondes. Onde era Berlim Ocidental, não.
Isso acontece porque, após a Segunda Guerra Mundial, a capital foi dividida entre as quatro potências vencedoras, que com o passar dos anos se tornaram apenas dois blocos: ocidental e oriental, e cada lado administrava a cidade da sua maneira.
Nos anos 1960, os bondes foram considerados uma forma de transporte antiga e ultrapassada em Berlim como um todo. Não era considerado algo alinhado com a visão de futuro que se tinha de transporte público na época.
Na parte ocidental da cidade, o serviço foi totalmente interrompido e os trilhos foram arrancados, dando lugar aos carros e ônibus.
Na parte oriental, a construção de novos conjuntos habitacionais, em especial nos anos 1970 nos bairros de Marzahn, Hellersdorf e Hohenschönhausen, fizeram com que o governo local optasse por manter os bondes, que eram uma forma mais rápida e barata de expandir o alcance do transporte público.
O resultado é que mais tarde se entendeu que os bondes são um bom complemento à rede de transporte público e geram menos impacto ao meio ambiente.
Então o serviço foi modernizado e hoje permanece integrado à rede de Berlim unificada – mas apenas onde a infraestrutura de trilhos foi mantida, no lado oriental.
Porém, com essa mudança de paradigma de transporte, a infraestrutura de bondes está atravessando a fronteira do Muro de Berlim e sendo expandida para alguns lugares de onde antes era Berlim Ocidental – e isso é uma tendência da cidade.
Você já tinha reparado que só passam trams (bondes) onde era Berlim Oriental? Sabia por que isso acontecia? Conta pra mim nos comentários.
Imagem do prédio do parlamento alemão (Reichstag) em chamas na noite de 27 de fevereiro de 1933. Foto: Bundesarchiv/CC-by-sa-3.0-de
Por causa do incêndio no Reichstag (parlamento alemão) que, neste 27 de fevereiro de 2023, fazem 90 anos Hitler teve as condições ideais para iniciar sua ditadura – cerca de um mês após ser apontado chanceler da Alemanha. O nazismo se alimentava do medo da população, e imediatamente anunciou que o ato era de autoria dos comunistas, seus principais inimigos políticos, e que fazia parte de um levante desse grupo para a tomada do poder – o que não se confirmou ou comprovou.
Na noite do incêndio, o ministro do Interior da Prússia no momento, Hermann Göring, uma das pessoas mais próximas de Hitler, anunciou que aquele era o “início da revolta comunista”. Não se tem certeza até hoje quem iniciou o incêndio, mas sabemos que apenas os nazistas se beneficiaram dele.
Isso porque, no dia seguinte ao incêndio, foi decretada pelos nazistas a “Portaria para a Proteção do Povo e do Estado”, que permitiu, aparentemente dentro da Lei, intensificar a perseguição aos inimigos políticos dos nazistas, em especial os comunistas, e eventualmente eliminar ou neutralizar a oposição.
A lógica era a seguinte: os nazistas queriam eliminar o sistema democrático, e concentrar todo o poder em torno do líder do partido (Hitler). Para isso, justificaram que seus principais adversários (os comunistas) estavam iniciando um movimento que instauraria uma ditadura, então era preciso agir rapidamente para reduzir os direitos da população e aumentar os do chanceler, lhe dando poder de perseguir e eliminar os opositores políticos.
Memorial em frente ao Reichstag que lembra os 96 membros do parlamento que foram assassinados pelos n@zistas. Foto: Carmen Guerreiro
Isso se traduziu em prisões e assassinatos de opositores políticos em larga escala. Foi assim que foram criados os primeiros campos de concentração: prisões com trabalho forçado para neutralizar os comunistas e outros inimigos, e também testar o sistema de violência que mais tarde o n4zism0 usaria contra os demais grupos perseguidos (especialmente os judeus), e que seria engrenagem fundamental do regime.
Os estragos causados pelo incêndio que hoje faz 90 anos, portanto, foram muito além da estrutura do prédio – o evento pavimentou o caminho do autoritarismo de Hitler.
O memorial da foto deste post fica hoje em frente à portaria de visitantes do Reichstag, e é uma homenagem aos 96 membros do parlamento que foram assassinados pelos n@zistas.
Recomendo também a visita, durante todo o mês de março/2023, da exposição “Prelúdio ao terror”, no museu Topografia do Terror, em Berlim. A exibição vai explicar a criação desses primeiros campos de concentração, de como se estabeleceram como parte do regime e da eventual transformação de muitos deles em memoriais que hoje são visitados para que as brutalidades do nazismo não se repitam.
Você já visitou algum desses memoriais? Qual deles? Me conta nos comentários.
Fontes: Topografia do Terror e LeMO (museu online do Deutsches Historisches Museum)
Fotos de Sophie e Hans Scholl tiradas pela Gestapo em 18 de fevereiro de 1943, dias antes da execução. Wikimedia Commons
Até onde você iria para mobilizar outras pessoas contra o nazismo? Você colocaria sua vida em risco para resistir ao brutal regime? Foi o que fizeram os irmãos Sophie e Hans Scholl e seu amigo Christoph Probst, fundadores do grupo de resistência Weiße Rose (Rosa Branca), que foram executados há exatamente 80 anos – no dia 22 de fevereiro de 1943.
Os dois eram estudantes da Universidade de Munique Ludwig-Maximilians, e junto com amigos começaram a escrever panfletos anti-nazistas que eram distribuídos pela universidade e alguns outros locais – os últimos tiveram uma tiragem maior e alcançaram diversas outras cidades.
Memorial para os irmãos Scholl e a Rosa Branca em frente à Ludwig-Maximilians-Universität München. Wikimedia Commons
As mensagens tinham apelo moral, criticando a apatia da sociedade alemã (especialmente dos intelectuais da academia) diante dos abusos, mentiras e crimes cometidos pelo governo. Nos panfletos, eles também pedem a sabotagem da engrenagem de guerra.
Depois da batalha de Stalingrado contra os soviéticos, em que os nazistas foram esmagados, não havia mais possibilidade de vencer a guerra, e o regime fez questão de combater ações de resistência com ainda mais repressão para tentar se manter no poder, não perder apoio popular e adiar a derrota pelo máximo de tempo possível.
Os irmãos Scholl e seus amigos sabiam que a atividade dos panfletos era extremamente arriscada e de pouco alcance. Porém não se conformavam com o que viam acontecer, de como a população alemã assistia amplamente calada (ou conivente) e de como eles próprios acabavam sendo reconhecidos como n4zistas por estrangeiros e membros dos grupos perseguidos apenas por serem alemães. Muitos concordavam, mas a maioria tinha medo de falar qualquer coisa, pois sabia que as consequências disso eram prisão, interrogatório, tortura e morte.
Além dos panfletos, a Weiße Rose passou a pixar muros de Munique com palavras como “liberdade”, para mostrar ao povo que havia resistência e que o regime podia ser questionado.
No dia 18 de fevereiro de 1943, enquanto jogavam panfletos no hall da universidade (veja foto nesse post), os irmãos Scholl foram vistos pelo zelador da instituição e levados para a reitoria. De lá, foram levados para a Gestapo para interrogatório, e executados no mesmo dia do julgamento.
Apesar de terem feito, como a maioria dos alemães, parte dos grupos de jovens ligados ao nazismo e em princípio com entusiasmo, a partir das referências e dos valores que tiveram em casa os irmãos Scholl cresceram e começaram a questionar o que viviam e testemunhavam naquela sociedade.
Você tem alguma pergunta sobre a Rosa Branca ou Sophie e Hans Scholl? Você acha que teria coragem de arriscar sua vida fazendo resistência ao regime nazista?
Hall central da Ludwig-Maximilians-Universität München, de onde os irmãos Scholl atiraram os panfletos que os fizeram ser detidos. Foto: Bjoern Laczay, de Moosburg, Alemanha. Wikimedia Commons
Para saber mais sobre o grupo e Sophie Scholl, seguem sugestões:
Filmes: Die weiße Rose (1982) e Sophie Scholl – Die letzten Tage (2005)
Projeto de Instagram: @ichbinsophiescholl produziu conteúdo com atores como se fosse Sophie e seu irmão e seus amigos organizando a Rosa Branca, simulando se as redes sociais existissem naquela época.
Beate e Serge Klarsfeld. Ele francês, ela alemã, crianças pequenas durante a Segunda Guerra, dedicaram a vida a denunciar, expor e pressionar criminosos nazistas para que fossem levados à justiça. E também para trazer justiça às vítimas do Holocausto.
Beate e Serge se conheceram em uma estação de metrô de Paris em 1960, surgiu um interesse mútuo e os dois construíram uma vida juntos (até hoje, com quase 90 anos). Uma a vida de amor, cumplicidade e… caça a nazistas.
Os dois viajaram o mundo inteiro com essa missão, cada vez focando em um caso diferente e lutando pelo reconhecimento da brutalidade do Holocausto.
Foram pessoas como essas que expuseram, foram presas diversas vezes, correram risco de morte e foram julgadas como inconvenientes para criar a memória de vergonha e rejeição que conhecemos hoje em torno dos crimes nazistas.
Porém essa memória só começou a se consolidar décadas após o final da Segunda Guerra, a partir da década de 1980. Foi então que Beate e Serge começaram a ser honrados por todo o seu incansável trabalho.
Beate no muro das lamentações e em um protesto de filhos de franceses perseguidos pelo nazismo
Serge e Beate em um protesto, com a estrela de Davi no peito
Charge de jornal de extrema direita ataca trabalho dos dois ativistas
Na década de 1970, um muro pede que o casal seja enviado às câmaras de gás e traz o desenho de uma suástica
Alguns anos depois, neonazistas tentam matar Beate e Serge explodindo seu carro
Essa história de amor e justiça foi tema de uma exposição no museu Topografia do Terror do fim de 2022 a 19/02/2023, onde as imagens desse post foram registradas.
Você conhecia o casal Klarsfeld? O que achou da história deles? Escreva nos comentários.
Que tal visitar um museu em Berlim com uma pegada multimídia, visual e interativa e uma abordagem atual, mas sem ser raso e nem armadilha de turista?
A exposição Berlim Global é dividida em sete salas interativas, que relacionam a história e a realidade atual da cidade nos temas revolução, espaços livres, fronteiras, prazer, guerra, moda e interconectividade.
É uma experiência imersiva que mistura instalações multimídia com objetos antigos para apresentar Berlim como um lugar complexo, construído por pessoas e ideias muito diversas.
Em alguns momentos o visitante relaxa, por exemplo ouvindo músicas que marcaram a cena musical da cidade, e em outros é tensionado pelos conflitos que envolveram Berlim.
Na sala da foto ao lado é possível navegar pelo mapa de Berlim e ouvir (em alemão ou inglês) diferentes perspectivas de berlinenses sobre questões diversas, como por exemplo o efeito da divisão da capital ainda hoje, mais de 30 anos após a queda do muro.
Além disso, os visitantes recebem na entrada uma pulseira eletrônica com a qual é possível opinar sobre os temas levantados pela exposição.
Inclusive as passagens entre um ambiente e outro trazem questionamentos sobre sua visão de mundo, e os visitantes respondem ao escolher uma das portas (mas isso não altera o trajeto).
No final, é possível ver como os outros votaram sobre as mesmas questões, e um computador imprime seu perfil com base nas respostas. Veja nas fotos abaixo:
as pulseiras são devolvidas nessas máquinas no final da exposição
o computador mostra como outras pessoas votaram e como vc se posiciona em comparação
o resultado é impresso em uma fichinha, com um perfil político seu
A exposição Berlim Global fica dentro do Humboldt Forum, um centro cultural inaugurado em 2021 na famosa Ilha dos museus, de Berlim, conhecida por abrigar enormes coleções de arte da Antiguidade.
A entrada padrão custa 7 euros, e é gratuita no primeiro domingo de cada mês.
parte da exposição Berlin Global, com cartazes sobre momentos políticos cruciais da história
vista da Alexanderplatz a partir da exposição
uniforme de prisioneiro político em campo de concentração no regime nazista
Você já foi ou quer ir nessa exposição em Berlim? Conta nos comentários o que você acha da proposta.
Não sei vocês, mas quando penso em Gandhi associo imediatamente à paz e à não-violência, método de resistência sobre o qual ele era tão apaixonado. É difícil conectar essa figura pacífica a Hitler, o mais conhecido ditador da história contemporânea, um homem desprezível, intolerante e violento.
Pois o fato é que, preocupadíssimo com o potencial destrutivo de uma outra guerra mundial (que efetivamente se concretizou), Gandhi tomou a iniciativa de escrever uma carta para Hitler em julho de 1939, pouco antes da eclosão do conflito.
“Querido amigo,
Amigos têm me incitado a escrever a você pelo bem da humanidade. Mas eu tenho resistido ao pedido deles, por causa do sentimento de que qualquer carta minha seria uma impertinência. Algo me diz que eu não devo fazer cálculos e que devo fazer meu apelo por tudo o que possa valer a pena.
É bastante claro que você é hoje a única pessoa no mundo que pode evitar uma guerra que pode reduzir a humanidade a um estado selvagem. Será que você deve pagar esse preço por algo por mais valioso que lhe pareça ser? Você vai ouvir o apelo de alguém que deliberadamente evitou o método de guerra, não sem sucesso considerável? De qualquer forma eu antecipo seu perdão, se eu tiver errado ao escrever para você.
Eu permaneço seu amigo sincero,
M. K. Gandhi”
Não se engane: Gandhi e Hitler não eram amigos. Na verdade, eles nem se conheciam. Mas a visão de mundo do líder indiano fazia com que ele se considerasse amigo de todos os humanos, e que propagasse incansavelmente as ideias da não-violência como forma de resistir à opressão (mais particularmente do imperialismo britânico).
Mas se te parece curioso que Gandhi tenha apelado a Hitler, que estava bastante determinado a dominar a Europa e o mundo por meio da guerra e a exterminar grupos inteiros de pessoas (em oposição a chamar todos de “amigos”), o mais engraçado dessa história é que Gandhi endereçou a carta apenas ao “Herr Hitler” (Senhor Hitler). E a correspondência acabou chegando para o meio-irmão do chanceler alemão, Alois Hitler, que tinha um café/bar em Berlim e não tinha qualquer contato com Adolf.
Eis que Alois decidiu responder a carta a Gandhi de uma forma igualmente surpreendente, que você confere na tradução (feita por mim) na próxima página.
“Prezado Sr. Gandhi,
Muito obrigado por sua carta. Em geral, compreendo sua preocupação. Entretanto, parece que eu não sou o Hitler que você está procurando. (Fique certo de que não comecei nenhuma guerra, nem pretendo fazê-lo no futuro). Você provavelmente se refere ao meu meio-irmão Adolf, que é o chanceler do Reich. Infelizmente, não posso colocar uma boa palavra a seu favor neste assunto, pois não tenho contato com meu meio-irmão.
Como já estamos em guerra, não sei se toda a história é ainda importante, mas o endereço correto seria:
Adolf Hitler, Reich Chancellery, Voßstrasse, Berlim, Alemanha.
Atenciosamente,
Alois Hitler”
É engraçado Alois passar o endereço da chancelaria do Reich, um endereço nada ordinário ou desconhecido, a Gandhi. Também é fascinante o tom absolutamente despretencioso e despreocupado da carta (ao mesmo tempo atencioso), como se não se tratasse de temas cruciais e de proporções (e consequências) planetárias.
A carta resposta de Alois faz parte de um livro lindíssimo que ganhei com fotos de correspondências entre pessoas célebres – embora nem sempre admiráveis –, que criam um contraste entre a “pomposidade” dos autores e elementos cotidianos e simples, como falas coloquiais ou assuntos mundanos. O livro se chama “Aus dem Papierkorb der Weltgeschichte”, com cartas compiladas por Aaron Aachen.
Em adição às curiosas cartas, é interessante notar que Gandhi escreveu mais um apelo a Hitler em 1940 (que não está no livro), em que condena as ações do regime até então (diz que elas “degradam a humanidade”), fala da não-violência e compara Reino Unido e Alemanha nazista:
“Não podemos desejar sucesso aos seus braços. Mas a nossa posição é única. Resistimos ao imperialismo britânico não menos que ao nazismo. Se existe uma diferença, ela está em grau. Um quinto da raça humana foi colocado sob o calcanhar britânico por meios que não suportarão escrutínio. Nossa resistência a ele não significa prejuízo para o povo britânico. Procuramos convertê-los, não derrotá-los no campo de batalha. A nossa é uma revolta desarmada contra o domínio britânico. Mas, quer os convertamos ou não, estamos determinados a tornar impossível sua regra pela não-violenta não-cooperação.”
Hoje seria polêmico comparar o imperialismo britânico ao nazismo, porque a elaboração da humanidade sobre os efeitos das duas violências ganhou pesos diferentes, de forma que o colonialismo e o Holocausto atualmente não são vistos com o mesmo julgamento (basta pensar na imagem da família real britânica e na de Hitler). Isso aconteceu a partir de uma construção de memória de vergonha e de condenação moral (que bom) em torno do Holocausto, mas de um questionamento tardio (e que ainda está dando seus primeiros passos) do colonialismo e seus efeitos.
Também é importante lembrarmos do contexto em que Gandhi escreveu o apelo para Hitler, e que o extermínio dos judeus aconteceria principalmente de 1941 a 1945 – embora a violência, a intolerância e o autoritarismo tenham estado presentes desde o início dos nazistas no poder (e até antes disso).
Que tal a comparação de Gandhi, como um homem daquele tempo, entre o colonialismo britânico e o nazismo de 1939? E o que mais te surpreendeu das cartas entre Gandhi e Alois Hitler?
Comenta aqui embaixo se você se interessa por cartas desse tipo e se gostaria que eu publicasse mais posts a partir de correspondências notáveis desse livro.
27 de janeiro é o aniversário da libertação de Auschwitz, campo de concentração e extermínio na Polônia. Por isso esse dia é conhecido como Dia Internacional da Lembrança do Holocausto.
Mas além dos 6 milhões de judeus assassinados pelo regime nazista, diversos outros grupos foram perseguidos, presos, torturados e mortos pelo sistema.
Muitas dessas vítimas são lembradas e homenageadas em 4 memoriais que você pode conhecer a pé a partir do Reichstag ou do Portão de Brandemburgo, em Berlim.
1. Memorial aos Judeus Mortos da Europa
Foto: Carmen Guerreiro
Foto: Carmen Guerreiro
Primeiro e maior de todos eles, construído em 2005, é dedicado aos 6 milhões de judeus mortos pelo nazismo no continente europeu.
O monumento é um conjunto de 2711 estelas e um centro de informações subterrâneo com entrada gratuita.
2. Memorial aos Homossexuais Perseguidos sob o Nazismo
Foto: Carmen Guerreiro
O memorial é uma estrutura de concreto com uma janela onde é possível assistir a um vídeo que representa o amor entre pessoas LGBT.
Ele é dedicado especialmente aos cerca de 50.000 homens homossexuais criminalizados legalmente e presos pelo nazismo.
Infelizmente o memorial não traz informações sobre a perseguição aos homossexuais.
3. Memorial aos Sinti e Roma da Europa assassinados sob o Nazismo
Foto: Carmen Guerreiro
Esse é um memorial de 2012 construído entre o Reichstag (parlamento) e o Portão de Brandemburgo.
Ele é dedicado às cerca de 500.000 pessoas dos povos Sinti e Roma perseguidas pelo regime nazista como “ciganos”.
Por causa da perseguição sofrida por esses povos, não é mais legal usar o termo “cigano” na Alemanha, pois está ligado à discriminação e não é como eles se autodenominam (saiba mais sobre o uso do termo “cigano” na Alemanha).
O memorial está sendo ampliado com biografias e histórias de resistência dos povos Sinti e Roma.
Foto: Carmen Guerreiro
4. Memorial e Site de Informação para as Vítimas dos Assassinatos da “Eutanásia” Nazista
Este é o memorial mais recente, inaugurado em 2014.
Este memorial homenageia as cerca de 300.000 pessoas com deficiência assassinadas pelo regime, além de idosos, pacientes psiquiátricos, e os “racialmente e socialmente indesejáveis”.
Em breve farei no instagram fazer um post detalhado sobre cada um desses memoriais e a perseguição de cada um desses grupos. Conforme isso acontecer, vou expandir este post do blog.
A data de 18 de janeiro marca o aniversário da Unificação Alemã, ou seja, quando a Alemanha se tornou um país único em 1871 a partir de uma colcha de retalhos de diferentes territórios.
Quem liderou esse movimento foi a Prússia, e por isso Berlim se tornou a capital da Alemanha (porque era capital da Prússia, o mais poderoso desses territórios)
Você sabia que o Reichstag, prédio do parlamento alemão, foi construído para esse novo e segundo império?
O nome é uma homenagem à antiga assembleia imperial que reunia embaixadores dos estados imperiais do Sacro Império para discutir interesses locais. Ela se reuniu na cidade de Regensburg (na Baviera), de 1663 até 1806, quando o primeiro império deixou de existir.
Enquanto o prédio do Reichstag não ficava pronto para servir de parlamento desta nova Alemanha unificada, foi usado um prédio na Leipziger Straße (também no centro de Berlim) por 23 anos.
O Reichstag ficou pronto em 1894, e é um símbolo da história parlamentar e posteriormente da democracia alemã.
O prédio esteve envolvido em todos os grandes eventos do século 20 na Alemanha:
– O anúncio da queda da monarquia e início da República de Weimar após a Primeira Guerra Mundial foi feito de uma de suas janelas em 9 de Novembro de 1918 pelo o líder do partido SPD no parlamento, Philipp Scheidemann
– Hitler iniciou sua ditadura a partir de um incêndio criminoso ao Reichstag
– O fim da Segunda Guerra foi marcado pela tomada de Berlim pelo Exército Vermelho, com uma imagem da bandeira da URSS sendo fincada em uma das torres do Reichstag
– O Muro de Berlim passava literalmente atrás desse prédio
Só durante a Primeira Guerra (1914-1918), em 1916, Kaiser Wilhelm II (o imperador Guilherme II) permitiu que instalassem na frente do parlamento a frase “Dem Deutschen Volke” (ao povo alemão).
Em seguida a Revolução de Novembro, que emendou na Primeira Guerra, derrubou a monarquia e instituiu pela primeira vez a democracia na Alemanha.
Essa é uma parte do discurso que Philipp Scheidemann, do partido SPD (o do atual chanceler Olaf Scholz e partido atual mais antigo da Alemanha), fez do Reichstag para uma multidão que ocupava o gramado em frente ao prédio:
“Trabalhadores e soldados! Os quatro anos da guerra foram terríveis. Os sacrifícios que o povo teve que fazer à propriedade e ao sangue foram horríveis. A infeliz guerra acabou. A matança acabou. As consequências da guerra, das dificuldades e da miséria pesarão sobre nós por muitos anos… Sejam unidos, fiéis e conscienciosos! A velha e podre monarquia desmoronou. Viva o novo! Viva a República Alemã!”
Mal sabiam eles que em pouco tempo os nazistas subiriam ao poder, acabariam com a casa da democracia alemã e iniciariam perseguições em massa que resultariam na Segunda Guerra Mundial.
Isso também aconteceu tendo o Reichstag como pivô. Um incêndio criminoso no prédio em fevereiro de 1933, um mês após a indicação de Hitler como chanceler por Hindenburg, levou ao imediato endurecimento do nazismo, com a intensificação das perseguições políticas e criação dos primeiros campos de concentração – muitos que mais tarde seriam convertidos em campos de extermínio.
Queimar a casa da democracia foi conveniente para o nazismo, e tornou o prédio inutilizado para funções parlamentares até o final do século 20, já que a derrota da Alemanha na Segunda Guerra foi seguida da divisão do país e de sua capital entre os quatro vencedores do conflito, e a fronteira entre o território administrado pelo Reino Unido e pela União Soviética passava nada mais nada menos que atrás do Reichstag.
Com a queda do Muro de Berlim e reunificação da Alemanha, o prédio foi reformado e retomou suas funções administrativas na década de 1990. Hoje a nova cúpula do Reichstag é um símbolo de uma Alemanha reformada após os grandes eventos do século 20, e de transparência em oposição à ideia de autoritarismo.
Você já visitou a cúpula do Reichstag?
Solenidade em memória das vítimas do nazismo
Foto: Carmen Guerreiro
O dia da libertação do campo de concentração e extermínio de Auschwitz, na Polônia, pelo Exército Vermelho, 27 de janeiro de 1945, foi convertido no Dia Internacional de Lembrança do Holocausto.
Hoje a data é usada não apenas para homenagear os judeus mortos no Holocausto, mas também outros grupos perseguidos. No 27 de janeiro de 2023, por exemplo, o parlamento alemão organizou uma solenidade especial para a data, com foco na memória dos homossexuais perseguidos pelo regime.
A foto ao lado foi tirada neste dia, e mostra as bandeiras a meio mastro e um letreiro escrito “we remember”, ou “nós lembramos”.
Minha contribuição para este dia foi um post com a indicação de 4 memoriais para visitar caminhando a partir do Reichstag dedicados a diferentes grupos perseguidos pelo nazismo: judeus, povos Sinti e Roma, homossexuais e pessoas com deficiência.
O meu tour pelo centro de Berlim começa ao lado do Reichstag, conta a história da Alemanha a partir do prédio e depois passa pelo Memorial aos Sinti e Roma da Europa assassinados sob o Nazismo, Portão de Brandemburgo e Memorial aos Judeus Mortos da Europa, seguindo depois por outros locais icônicos da capital alemã.
Frederico II e seus cortesãos se reúnem em torno da mesa, uma cena comum da época do mais importante rei prussiano. Georg Schöbel, ca. 1900-1920. Wikimedia Commons
Frederico, o Grande, foi o principal monarca prussiano, de um lado construindo uma reputação continental de um exército forte, disciplinado e invencível, que mais tarde tornaria a Prússia líder da unificação da Alemanha. De outro lado, Frederico era um homem ilustrado, refinado, apreciador das artes e da cultura, e isso se refletia nos rituais da sua corte em torno da mesa.
A Prússia era um Estado de guerra, por isso a rotina de Frederico II era diferente em tempos de paz ou de confronto. Quando não estava em guerra, os prazeres da mesa envolviam o rei por longas horas, em que ele comia e conversava.
Entre suas comidas preferidas estavam tortas, queijos, carnes de vitela e ovelha, sopas e peixes, com preferência por pratos picantes – na verdade ele pediu que TODOS os pratos fossem picantes, e seu chef preferido, André Noël, criou uma “sopa de pimenta” para ele, com noz moscada e gengibre.
Frederico II também amava sobremesas, e todos os dias anotava em uma lousa o que queria comer de doce no dia seguinte, entre frutas (frescas e em conserva) e confeitaria. Aliás, seu café da manhã era simples e doce: chocolate e frutas.
Em épocas conflituosas, Frederico II comia menos: depois da Guerra dos 7 anos, ele parou de jantar. Convidava de três a seis generais e alguns de seus cortesãos para discutir estratégias, e o jantar era servido somente quando o rei se retirava para o seu quarto.
Eventualmente ele acompanhava os convidados até a sala de jantar, onde continuava a conversar circulando pelo ambiente, mas sem comer.
Refinamento francês
Apesar de politicamente a Prússia ser inimiga da França, a arte, a cultura, o refinamento e os rituais de corte franceses eram admirados e adotados por Frederico II, que inclusive preferia falar em francês.
A refeição na corte era ritualística e estética, e buscava despertar os 5 sentidos dos convidados como forma de prazer. Parte dessa experiência eram os utensílios colocados à mesa, demonstrando uma enorme riqueza de louças que combinavam entre si e traziam o brasão da monarquia prussiana e as iniciais do rei.
Eram, portanto, símbolos de autoridade. Esses conjuntos demonstraram poder também por serem feitos de metais preciosos ou faianças (um tipo de cerâmica branca). Dresden também passou a produzir sua própria porcelana no século 18, que era conhecida como “ouro branco” pelo seu refinamento.
No entanto, quando a monarquia prussiana se endividava em guerras, Frederico II mandava derreter os conjuntos de prata e ouro, usados para impressionar, e em épocas de necessidade eram derretidos para fabricar moedas. Por isso também o rei passou a colecionar porcelanas, que traziam o valor estético sem o custo do ouro e da prata.
Aniversários na corte de Frederico II
Quando um membro da família real prussiana fazia aniversário, a festa durava o dia inteiro, começando com uma homenagem seguida de um parabéns, um almoço, e depois uma ópera, sendo encerrada à noite com um baile.
A comemoração era feita no palácio Monbijou, que ficava onde hoje é o parque Monbijou (do outro lado do rio da Ilha dos Museus, de frente para o museu Bode) e foi demolido em 1959 depois de ser danificado na Segunda Guerra.
Durante os períodos de guerra, os aniversários não eram comemorados. E a partir de 1765 as festas eram feitas no palácio do príncipe Heinrich (hoje da Universidade Humboldt, em frente à Bebelplatz).
Curiosamente, nas festas os cachorros do rei recebiam comidas mais refinadas do que alguns dos convidados que se sentavam em mesas adjacentes à principal. Enquanto os animais comiam perdiz, carne de veado, molho, manteiga e bolo, a refeição dos convidados que não se sentavam à mesa real tinha menos pratos e opções mais simples.
O conteúdo desse post faz parte da minha pesquisa para o novo tour de história da alimentação e da cerveja em Berlim, que devo lançar em abril/maio de 2023.
Fonte: revista Berliner Geschichte, edição 29 (Kulinarisches Berlin)