Günter Litfin, o primeiro assassinato do Muro de Berlim – e o memorial criado para ele em uma antiga torre de comando

Günter Litfin também é homenageado no memorial das Cruzes Brancas (Weiße Kreuze), na calçada do Tiergarten ao lado do Reichstag. Foto: Carmen Guerreiro

Günter Litfin foi o primeiro fugitivo a ser assassinado a tiros na tentativa de atravessar a fronteira entre Berlim Oriental e Ocidental. O jovem de 24 anos morava do lado oriental e trabalhava do lado ocidental da cidade. Ele tentou a fuga 11 dias após a construção do Muro, em agosto de 1961.

Günter tentou atravessar a nado o Humboldt Harbor, perto de onde fica hoje a estação central de Berlim. A guarda de fronteira disparou tiros de aviso, Günter persistiu na fuga e foi pego pela segunda onda de tiros, agora disparados para acertá-lo.

Depois da reunificação da Alemanha, o irmão de Günter, Jürgen, articulou a preservação da torre de comando mais próxima de onde o seu irmão foi morto. Ao conseguir esse feito, ele construiu ali um memorial ao irmão, que manteve pessoalmente por muitos anos até entregar a gestão do local para a Fundação do Muro de Berlim.

O memorial fica em uma das 280 torres de observação que estavam distribuídas ao longo dos mais de 150 quilômetros do Muro de Berlim. O memorial é um local também para aprender mais sobre como funcionava o complexo de segurança do Muro de Berlim e a vigilância envolvendo a Alemanha Oriental.

Günter Litfin foi a primeira pessoa assassinada, mas não morta na tentativa de atravessar o Muro. A primeira pessoa a morrer na tentativa de fuga foi Ida Siekmann, dois dias antes de Günter. Porém ela não foi assassinada: ela pulou da janela de seu apartamento do terceiro andar, que dava para Berlim Ocidental, mas não resistiu aos ferimentos.

Assista ao vídeo com imagens do Memorial Günter Litfin que fiz para o Instagram.

O Memorial Günter Litfin fica aberto de maio a outubro, apenas aos finais de semana, das 11h às 17h.

Endereço: Kieler Str. 2, Berlin.

A entrada é gratuita.

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O que fazer em Bremen: 10 lugares históricos para conhecer

Bremen é uma cidade do norte da Alemanha que encanta pela sua arquitetura e história – mas o que fazer por lá? Confira neste post 10 atrações que são um pedacinho da história local, para não deixar de visitar quando estiver na região. Conheci todas elas em um só dia, viajando a partir de Hamburgo em um trem regional, em um trajeto que dura cerca de uma hora.

Para entender o que você verá em Bremen, é importante saber que ela era uma das mais relevantes cidades da Liga Hanseática, que controlava a principal rota comercial da Idade Média por rios e mares do norte europeu.

1. Mühle am Wall

Foto: Carmen Guerreiro

Este moinho de 1898 está onde costumavam ficar as muralhas da cidade de Bremen. A construção abriga um restaurante e há um lindo jardim à sua volta.

2. Igreja Unser Lieben Frauen

Esta igreja paroquial próxima à praça central do centro histórico (Marktplatz) começou a ser construída no século 13. A construção foi feita sobre uma estrutura muito mais antiga, como era costume das igrejas góticas. O que sobrou da estrutura inicial é a cripta do ano 1020, o espaço construído mais antigo de toda Bremen.

A igreja teve poucos danos na Segunda Guerra, mas 19 de seus vitrais foram destruídos. Para substituir a perda, o artista francês Alfred Manessier criou esses novos vitrais nos anos 1960 e 70.

3. Rathaus Bremen

Foto: Carmen Guerreiro

A Prefeitura de Bremen se tornou Patrimônio Mundial da UNESCO em 2005. A estrutura original de tijolos góticos do século 15 foi remodelada com estilo renascentista 200 anos depois, com ricos relevos e estátuas de figuras políticas relevantes da época, como Carlos Magno.

4. Bremer Roland

Foto: Carmen Guerreiro

Roland era um cavaleiro medieval importante do exército de Carlos Magno que se tornou uma figura mítica na literatura. Há estátuas dele espalhadas por toda a Europa, e na Alemanha elas, simbolizam a liberdade e os direitos de mercado. A estátua de Roland em Bremen, que fica em frente à prefeitura, é uma das mais conhecidas e antigas (do ano 1404), e fica na praça central. Ela tem cinco metros e meio! A distância entre seus joelhos era uma unidade de medida histórica chamada “elle”.

5. Os músicos de Bremen

Quem lembra desse conto compilado pelos irmãos Grimm? “Os músicos de Bremen” conta a história de um burro, um cão, um gato e um galo que partem em uma viagem para Bremen em busca de uma vida melhor – Os Saltimbancos, no Brasil, foram inspirados neles. A estátua de bronze da foto é de 1953 e fica ao lado da prefeitura.

Os quatro músicos (ou melhor, 3, pois um deles foi arrancado de lá) também estão representados em uma linda fonte de água em frente à loja de doces típicos Bremer Bonbon Manufaktur, que fica em um pequeno pátio da Böttcherstraße (veja o item 8).

6. St. Petri Dom (catedral)

A Catedral de Bremen também é do século 13, e mistura estilos como o românico, o gótico e o renascimento gótico. Assim como na outra igreja, a cripta é a estrutura mais antiga, do século 11.

7. Schütting

Foto: Carmen Guerreiro

Essa é a guilda de Bremen, construída no estilo renascentista nos anos 1530. O local era um símbolo do poder dos ricos comerciantes da cidade, local chave na Liga Hanseática durante a Idade Média.

8. Böttcherstraße

Foi uma surpresa descobrir a história desta charmosa viela de Bremen – por trás das lindas fachadas há um passado nada bonito. Ela foi remodelada de acordo com um projeto arquitetônico durante a década de 1920. A iniciativa foi de um empresário magnata do café de Bremen (e inventor do café descafeinado), Ludwig Roselius, que foi um dos primeiros apoiadores do nazismo. Na verdade, a simbologia por trás da construção da rua é de uma supremacia racial nórdica.

9. Haus des Glockenspiels

Foto: Carmen Guerreiro

Esticados entre os picos de duas fachadas da rua, esses sinos tocam periodicamente ao longo do dia e, pelas ideias iniciais, suas músicas folclóricas homenageavam exploradores e colonizadores alemães, estabelecendo uma suposta superioridade deles sobre as populações originais desses locais (lembrando que o idealizador da rua era apoiador de Hitler e de suas ideias absurdas de raças superiores e inferiores). A rua porém foi bastante destruída durante a guerra causada pela ideologia defendida pelo seu construtor.

10. Schnoor

Foto: Carmen Guerreiro

Este mini bairro é o mais antigo e charmoso de Bremen, onde morava a comunidade pesqueira da cidade. As vielas são repletas de lindas casinhas dos séculos 15 a 18, agora ocupadas por restaurantes, galerias, cafés e lojas de artesanato e souvenires. Vale a pena se perder pelas suas ruelas!

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9 passeios históricos bate e volta a partir de Berlim

Trem regional alemão. Foto: licença de imagem Canva Pro

O bilhete que permite viajar com trens regionais e usar qualquer rede de transporte público na Alemanha por apenas 49 euros mensais, o Deutschlandticket, é válido a partir deste 1º de maio. Abaixo fiz uma seleção de 9 lugares importantes historicamente que você pode visitar em um bate a volta a partir de Berlim usando esse bilhete, sem precisar de hospedagem e pernoite, e que não exigem uma viagem muito longa e cansativa.

Como é possível cancelar o bilhete todo mês, os turistas que não moram na Alemanha também podem se beneficiar desta forma barata de viajar, desde que informem um endereço alemão e uma conta bancária europeia (que tenha, portanto, IBAN).

1. Lutherstadt Wittenberg

Praça central de Wittenberg. Foto: licença de imagem Canva Pro

A cidade onde nasceu o líder da Reforma Protestante Martinho Lutero hoje tem diversas atrações para aprender mais sobre a vida do reformador, mas também entender o movimento que mudou a história do cristianismo e do mundo ocidental. O principal lugar para visitar é o mosteiro augustiniano onde ele morou no meio do século 16. A cidade também tem construções belíssimas, entre igrejas, praça central e um prédio do famoso arquiteto austríaco Hundertwasser.

RE 3: Berlin Hbf – Lutherstadt Wittenberg Hbf (1h45)

2. Leipzig

Völkerschlachtdenkmal. Foto: licença de imagem Canva Pro

Esta é uma cidade grande, que vale ficar mais de um dia, porém pode ser visitada em um bate e volta. É famosa por ser o local de nascimento e/ou trabalho de compositores famosos de música clássica, como Wagner, Bach, Mendelssohn, Bartholdy, os Schumanns e Mahler, e há algumas atrações relacionadas a isso. Leipzig também teve um papel fundamental na história da divisão da Alemanha na Guerra Fria, pois ficava no lado oriental e foi palco da famosa Revolução Pacífica de 1989, que influenciou na queda do Muro de Berlim. Visite também o Völkerschlachtdenkmal, que comemora a derrota napoleônica na importante Batalha de Leipzig.

RE 7 + RE 13: Berlin Hbf – Dessau Hbf – Leipzig Hbf (2h40)

3. Rostock

Praça de Rostock. Foto: licença de imagem Canva Pro

Se perder no lindo centro histórico desta cidade no norte da Alemanha já vale a visita. Aproveite também para conhecer mais sobre a história da Liga Hanseática, importantíssima rota de comércio fluvial e marítimo da Idade Média. Recomendo a visita ao museu Kulturhistorische Museum Rostock (com entrada gratuita), para um mergulho na história local. E por que não pegar o metrô e ir até Warnemünde molhar os pés na água gelada do Mar Báltico e conhecer um farol do século 19?

RE 5: Berlin Hbf – Rostock Hbf (2h40)

4. Schwerin

Palácio de Schwerin. Foto: licença de imagem Canva Pro

A principal atração desta cidade é o seu magnífico palácio em uma ilha no meio da cidade, que foi transformado diversas vezes ao longo dos séculos. A história de Schwerin está profundamente ligada à ocupação eslava da região, e o primeiro castelo local foi construído por eslavos no século 9 d.C.. A cidade se tornou sede do bispado e centro de cristianização de eslavos. A visita também é uma oportunidade para aprender sobre a história dos Mecklenburg, uma das dinastias mais antigas da Europa.

RE 8: Berlin Hbf – Schwerin Hbf (2h40)

5. Potsdam

Palácio de Sanssouci. Foto: licença de imagem Canva Pro

Bem próximo a Berlim está Potsdam, a capital do estado de Brandemburgo, que abriga um grande conjunto de palácios da nobreza prussiana. O mais famoso deles é o Sanssouci, que pode ser visitado e é ricamente decorado. Este era o palácio preferido do rei Frederico, o grande (e onde o famoso rei prussiano está enterrado). Aproveite também para caminhar pelos jardins dos palácios, conhecer o Portão de Brandemburgo (diferente do de Berlim) e o bairro holandês, do século 18.

RE 1 ou RE 56: Berlin Hbf – Potsdam Hbf (30 mins)

6. Oranienburg (Sachsenhausen)

Entrada do campo de concentração de Sachsenhausen. Foto: licença de imagem Canva Pro

O campo de concentração nazista mais próximo de Berlim é Sachsenhausen, na cidade de Oranienburg. Este foi um dos primeiros campos de concentração do regime, construído como campo modelo em 1936 – porém desde 1933 já havia um campo improvisado em Oranienburg. Ele serviu de prisão e campo de trabalho forçado até 1945, quando o exército soviético passou a usá-lo para prisioneiros da Segunda Guerra e opositores políticos. Hoje o local é um memorial e museu, com entrada gratuita e audioguia em português.

RE 5: Berlin Hbf – Oranienburg (30 mins) ou RB 32: Berlin Ostkreuz – Oranienburg (30 mins)

7. Dessau (Bauhaus)

Prédio principal da escola Bauhaus em Dessau. Foto: licença de imagem Canva Pro

Se você se interessa por design e arquitetura, não pode deixar de visitar os prédios da Bauhaus na cidade de Dessau. A Bauhaus foi uma escola que funcionou no entreguerras e entrou para a história como local de experimentação inovador que modelou a cara do que era moderno no século 20 no mundo ocidental. E por isso mesmo foi fechada pelos n@zist4s. Hoje é possível visitar o antigo prédio da escola, a casa dos professores, o museu que remonta a história do movimento e até mesmo ficar hospedado no alojamento dos estudantes. Também há várias construções projetadas por mestres da Bauhaus na cidade.

RE 7: Berlin Hbf – Dessau Hbf (1h40)

8. Lübbenau e Lehde (Spreewald)

Canal em Lübbenau, na floresta de Spreewald. Foto: licença de imagem Canva Pro

Esse é um dos meus lugares preferidos nos arredores de Berlim: a floresta de Spreewald é conhecida como a Veneza da Alemanha, com seus inúmeros canais no meio das árvores. A região é rica em história, produzindo pepinos em conserva (hoje com denominação de origem controlada) desde o século 16. O local tem ocupação histórica dos sorben, um povo eslavo, e parte da comunidade ainda mantém as tradições e a língua (que podem ser conhecidas no Freilandmuseum). Recomendo explorar a região pelas cidades de Lübbenau e Lehde: é possível andar de uma para outra no meio da floresta ou alugar uma canoa e remar pelos canais.

RE 2: Berlin Hbf – Lübbenau (Spreewald) (1h40)

9. Brandenburg an der Havel

Horizonte da cidade de Brandenburg an der Havel. Foto: licença de imagem Canva Pro

A mais antiga cidade do território de Brandemburgo, do século 10, batiza não apenas o estado, mas o portão que é símbolo de Berlim. O local foi dominado alternadamente por eslavos e germânicos, e foi um importante polo de cristianização. Até hoje é possível visitar suas diversas (e magníficas) igrejas medievais, reconstruídas após os bombardeios da Segunda Guerra. Também existe um memorial e museu sobre pessoas com deficiência que foram aprisionadas e assassinadas pelo programa n4zist@ de “eutanásia”.

RE 1: Berlin Hbf – Brandenburg Hbf (1h)

Lembrando que meu critério foi escolher lugares históricos importantes que você pode visitar saindo de Berlim, usando apenas transporte público e trens regionais (válidos para o Deutschlandticket, o bilhete de 49 euros) e até 3 horas de viagem (cada trecho). 

Se você estiver de carro ou queira fazer outro tipo de viagem que não histórica, outras opções podem entrar na lista, como Dresden, Quedlinburg, Parque Nacional da Suíça Saxônica, entre muitos outros.

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Berliner Weisse: a história da cerveja típica de Berlim (que quase sumiu do mapa)

Pintura Weißbierausschank im Hinterhofgarten, de Franz Skarbina, mostrando jardim da cervejaria de Berliner Weisse Gabriel & Jäger, em Berlim no século 19. Imagem: CC 1.0

Você conhece a Berliner Weisse, cerveja típica de Berlim? Ela é uma cerveja leve, que se diferencia pelo sabor ácido – que é historicamente acidental. 

Essa história começa no século 16 na região de Berlim, quando a falta de regulamentação e de normas de higiene no processo de produção da cerveja fez com que, logo após a fermentação, bactérias do ácido lático e/ou acético se desenvolvessem, adicionando um gosto ácido à cerveja. 

Isso também acontecia por causa do tipo de fermentação das cervejas do norte da Alemanha, que ocorria com temperaturas mais altas do que no método tradicional bávaro, favorecendo o desenvolvimento de microrganismos.

Em 1648, já existiam cerca de 250 cervejarias em torno do rio Spree (que tem cerca de 400 quilômetros e corta Berlim, terminando no oeste da cidade, no rio Havel).

Apesar de serem conhecidos pelo vinho, franceses ajudaram na popularização da cerveja berlinense: milhares de huguenotes (protestantes do país vizinho) migraram após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) para repovoar a região de Berlim e Brandemburgo (hoje estado em torno da cidade).

Eles influenciaram profundamente a alimentação local, e também ingressaram no ramo cervejeiro. Em 1770, por causa deles, já eram 289 cervejarias fabricando e vendendo Berliner Weisse em torno do Spree.

As tavernas produziam sua própria Berliner Weisse, então a flora microbacteriana de cada local e seus barris de madeira determinava o gosto da cerveja. Por isso, cada bar tinha uma cerveja com gosto ligeiramente diferente do outro.

Quando Napoleão e suas tropas dominaram Berlim e região no início do século 19, batizaram a Berliner Weisse de “Champanhe do Norte” por seu caráter leve, borbulhante e ácido – não se sabe se isso foi um elogio ou um deboche.

Porém, no início do século 19 as importações de cerveja foram liberadas em Berlim, e começaram a chegar na cidade as primeiras cervejas produzidas com o método bávaro, com fermentação feita a baixas temperaturas – o que foi um sucesso entre os berlinenses.

As cervejas produzidas dessa forma (lager) – sendo as mais conhecidas as pilsen e as tipo exportação – são mais leves e duram mais tempo engarrafadas. Por isso caíram no gosto da maioria, e também apresentaram vantagem de mercado, na medida em que tinham mais tempo de prateleira.

Berliner Weisse
A cervejaria Lemke, em Berlim, foi uma das responsáveis por “ressuscitar” a Berliner Weisse, e traz diversas opções no seu cardápio. Foto: Carmen Guerreiro

Aos poucos a Berliner Weisse foi sumindo dos cardápios, e em 1835 restavam apenas 30 cervejarias fabricando esse tipo em Berlim. Essa queda de popularidade só se aprofundou mais e mais, até que apenas duas cervejarias mantiveram a produção no século 20.

Porém essa e outras cervejas típicas, como a cerveja de trigo bávara, renasceram no pós-Segunda Guerra a partir de um movimento amplo de retomada e valorização de tradições locais, em especial de comidas e bebidas. No mundo das cervejas, isso foi potencializado no século 21 com o movimento das “craft beers”, ou cervejas artesanais.

É por isso que hoje você pode experimentar a Berliner Weisse em cervejarias de Berlim ou já engarrafada em mercados – embora hoje o sabor ácido não seja consequência de um descontrole do processo, e sim da adição de fermentos láticos que dão acidez e sabor frutado à bebida.

Esse conteúdo faz parte do tour de história da cerveja e da comida em Berlim, que estou desenvolvendo e vou lançar em breve. Se você quiser saber sobre o lançamento, me mande seu e-mail.

Fonte: revista Berliner Geschichte, edição 29 (Kulinarisches Berlin), editora Elsengold.

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Por que existem tantas cerejeiras em Berlim?

Foto: Luciano Arnold

A Páscoa é a comemoração cristã que celebra a chegada da primavera e o “renascimento” da natureza após um longo inverno, se relacionando com antigas tradições que comemoravam as colheitas e a chegada de uma nova estação.

Essa também é a época em que as cerejeiras florescem no hemisfério norte.

Essas árvores, conhecidas como “Sakura” no Japão, são apreciadas no país não só pela simbologia da chegada da primavera, mas porque representam a conexão entre as pessoas e a natureza.

Tradicionalmente para os japoneses as cerejeiras trazem paz e tranquilidade para os seres humanos, com sua beleza estonteante e transitória (afinal, ela fica somente cerca de 2 semanas em flor).

Mas por que existem tantas cerejeiras na Alemanha, principalmente em Berlim?

Acredite ou não, isso tem a ver com uma campanha de televisão feita no Japão.

Após a queda do Muro de Berlim e a posterior reunificação da Alemanha de 1990, o canal japonês TV-Asahi fez uma campanha para levantar dinheiro e doar cerejeiras para a Alemanha, em homenagem ao fim da divisão.

Tantas pessoas doaram que mais de 9.000 árvores viajaram para a Alemanha, sendo que uma grande parte foi distribuída em locais de Berlim, especialmente onde passava o Muro. 

Porém também é possível encontrar cerejeiras em parques como o Britzer Garten, que fica no sul da cidade.

E essas são as cerejeiras que fui conhecer hoje!

A entrada para o Britzer Garten (em 2023) custa 3 euros de março a outubro, e 2 euros de novembro a fevereiro (crianças de até 5 anos não pagam).

Assista ao vídeo que fiz sobre as cerejeiras em flor do Britzer Garten.

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East Side Gallery: memorial ou galeria de arte urbana?

East Side Gallery
East Side Gallery
Foto: Carmen Guerreiro

O que a East Side Gallery é pra você, memorial do Muro de Berlim ou galeria de grafites emblemática?

Na verdade não tem uma resposta certa, porque a East Side Gallery é um pouco de tudo e nada disso ao mesmo tempo.

Quem me explicou isso foi a querida Roberta Caldas, do @mamaeoutdoor, comunicadora, especialista em memoriais de eventos traumáticos e seguidora aqui do Somos pq Fomos. 

Ela me convidou para fazer um passeio e refletir sobre a East Side Gallery como um lugar de memória em Berlim.

Para quem não sabe, a East Side Gallery é chamada de “o maior trecho contínuo do Muro de Berlim” ainda de pé. Porém, atualmente ela é toda “picotada” por diversos motivos.

Ela é uma das principais atrações turísticas de Berlim, mas isso não foi planejado.

A galeria surgiu logo após a queda do muro como uma oportunidade para artistas do lado oriental de Berlim se manifestarem (onde antes ninguém do lado oriental podia chegar perto) com murais que representassem as mudanças provocadas pela queda do muro.

Ela não foi pensada como memorial, mas de alguma forma foi vista como um ao longo do tempo, por ser um pedaço (físico e enorme) do passado, símbolo de um evento traumático, ali no meio da cidade.

East Side Gallery

Mas pra que serve um memorial? Para que os eventos traumáticos que ele relembra não se repitam. E como a East Side Gallery faz isso? Ela faz isso mesmo? E precisa fazer? 

Apenas falar sobre o passado é suficiente para fazer as pessoas de hoje entenderem a gravidade do trauma e não repetirem o que aconteceu? Ou precisamos trazer também presente e futuro para o memorial, para gerar mais conexão e sentido?

Foi com esses questionamentos que a Roberta me guiou ao longo dos mais de 1.300 metros (não mais contínuos) de Muro de Berlim daquele trecho, explicando as transformações, os descuidados e os conflitos de interesses ao longo dos anos.

Falamos de muito mais coisas, como das histórias de pessoas do lado oriental e ocidental que morreram naquele trecho do muro por motivos diversos, sobre a estrutura do complexo do Muro de Berlim, e sobre algumas simbologias presentes nas artes – como a banana, que era praticamente um objeto de desejo na Alemanha Oriental por causa de sua escassez.

Quem quiser se aprofundar nesse assunto, pode baixar a dissertação da Roberta sobre a East Side Gallery.

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A história das duas mulheres que envenenaram seus maridos para ficar juntas 100 anos atrás

Capas de versões alemã e inglesa do romance que Alfred Döblin escreveu sobre o caso

Há 100 anos um escândalo mobilizou Berlim: duas mulheres foram condenadas ao mesmo tempo pelo envenenamento de seus maridos.

Mas o alvoroço – que rendeu até um livro de um escritor famoso – não era só por isso: Ella Klein e Margarethe Nebbe mantinham um relacionamento secreto entre si e envenenaram seus maridos pois não tinham a permissão para se divorciar e sofriam com abusos físicos, sexuais e psicológicos em casa.

Tudo isso vir a público, na sociedade alemã de 1923, era motivo para um estardalhaço.

A imprensa queria sangue: “Criminosas sexuais em Moabit”, “Degeneradas em julgamento”, “Petição de morte em julgamento de veneno” são algumas das manchetes da época.

O envenenamento era considerado uma “arma feminina”, sádica e calculista, embora estatisticamente o número de assassinatos cometidos com esse método fossem iguais entre homens e mulheres.

A professora Hania Siebenpfeiffer, especialista em crimes cometidos por mulheres no entreguerras, explica que o envenenamento era considerado “uma inversão pervertida do leite materno”, que em vez de nutrir (considerado papel social da mulher), matava.

Berlim já era conhecida como uma cidade progressista nos “anos dourados” (1920), mas só relativamente àquele tempo: ser lésbica era considerada uma “pseudo-homossexualidade”, ou seja, acreditava-se que era um sentimento adquirido temporariamente por mulheres frustradas por não desempenharem o que se acreditava ser seu papel social, como ter filhos.

Enquanto isso, homens homossexuais eram considerados à época dotados de uma doença congênita no órgão reprodutivo que afetava sua sanidade mental (e ainda dizem que a ciência é imparcial!). Por isso tudo, somente a homossexualidade entre homens era tida como crime, punível pelo famigerado parágrafo 175 – muito usado para a perseguição de homens gays mais tarde pelo regime nazista, de 1933 a 45.

Dr. Magnus Hirschfeld. Foto: Welcome Images / CC 4.0

O doutor Magnus Hirschfeld (foto), que liderava o pioneiro Instituto de Sexologia (de onde, 10 anos mais tarde, sairiam metade dos livros queimados na fogueira dos nazistas) em apoio à comunidade LGBT, foi consultado no julgamento, e não pôde alegar a tal da “homossexualidade congênita” por se tratarem de mulheres.

Ele era um aliado e normalmente atuava para reduzir as penas, mas precisava jogar com os valores da época: por isso ele alega “inibições de desenvolvimento e infantilidade” de Ella Klein, e uma “limitação” de Nebbe, que se assemelharia à demência. “Seus casamentos forçados com homens teriam causado uma emergência psicológica.”

No meio do julgamento, diante da postura tímida das duas mulheres e de seu choro frequente, aliado à descoberta e comprovação das brutalidades sofridas pelas duas nas mãos dos respectivos maridos abusadores e alcoólatras, a audiência muda de postura e tende a atenuar a condenação – muitos pressionavam no início por pena de morte.

A sentença foi de quatro anos de prisão para Klein, e um ano e seis meses em uma penitenciária com trabalhos forçados para Nebbe.

O romancista e psiquiatra Alfred Döblin, autor do clássico Berlin Alexanderplatz, também se envolveu com o escândalo que parou Berlim, e escreveu o livro “Die beiden Freundinnen und ihr Giftmord” (título não traduzido para a língua portuguesa, mas que poderia ser entendido como “As duas namoradas e seu assassinato por veneno” – versão em inglês). 

Este foi meu resumo em português da matéria de Matthias Schirmer, da rbb24, sobre o caso de 100 anos atrás. Leia todos os detalhes no texto original (em alemão).

Leia também o post que fiz sobre o Instituto de Sexologia do Dr. Hirschfeld e sobre o tratamento das pessoas LGBT pelo regime nazista.

Fonte: rbb24.de

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O telegrama que o imperador alemão enviou pedindo para a enciclopédia incluir seu nome em uma palavra

Kaiserwetter e Kaiserschmarrn
Kaiserwetter e Kaiserschmarrn
Fotos: Torre de TV – Carmen Guerreiro / Kaiserschmarrn – A. Lein/Getty Images

Em 1907, Kaiser Wilhelm II, o imperador alemão, se inquietou com uma nova gíria que circulava por aí e enviou um telegrama à redação do Meyer’s Großem Konversations-Lexicon, uma enciclopédia com léxico de conversação. 

O imperador se sentiu lisonjeado que a nova palavra da época conectava a palavra “Kaiser” (imperador) ao ótimo tempo, com sol e céu aberto (o que chamamos na língua portuguesa de “céu de brigadeiro”): “Kaiserwetter”. Mas talvez não tenha se lisonjeado o suficiente: o imperador queria que o seu nome também fizesse parte da palavra, sugerindo “Kaiser-Wilhelm-Wetter”.

O Meyer’s Großem Konversations-Lexicon, que foi criado na metade do século 19 e descontinuado apenas no fim do século 20, estava na sua sexta edição entre 1902 e 1909. Ele era considerado referência e padrão quando se tratava dos desenvolvimentos técnicos, científicos e sociais da época.

Não tenho o registro da resposta da editora da enciclopédia, mas é certo que pedido do imperador colocou imediatamente a equipe em uma saia-justa: como mudar uma palavra de cima para baixo, ou seja, decretar que uma gíria, que nasce do uso diário e informal da língua, seja mudada porque o imperador assim quis?

E mais: Kaiser Wilhelm II também sugeriu que a famosa sobremesa Kaiserschmarrn, conhecida no sul da Alemanha, mas originária na Áustria, levasse o nome do imperador austríaco à época, Franz Josef, como forma de homenagem política ao aliado, transformando o prato em “Kaiser-Franz-Josef-Schmarrn”.

Diferentes versões explicam as origens dos termos Kaiserwetter e Kaiserschmarrn. Kaiserwetter é conectada por alguns (Duden e Deutschen Wörterbuch) ao próprio Kaiser Franz Josef I e ao seu dia de aniversário, 18 de agosto, quando o tempo de verão normalmente estava aberto. Para outros (Deutschen Sprichwörter-Lexikon), a palavra é ligada de fato ao Kaiser Wilhelm II, já que nos dias em que o imperador participava de festividades públicas normalmente fazia bom tempo, daí “tempo de imperador” (Kaiserwetter).

Já a origem de Kaiserschmarrn envolve diversas lendas, todas ligadas ao Kaiser Franz Josef I. Porém historiadores afirmam que, neste caso específico, provavelmente a palavra “Kaiser” (que se pronuncia “Caisa”) se transformou de “Kaser” (Senner, um tipo de pastor e leiteiro dos Alpes) ou “Casa”, de forma a fazer referência a um tipo caseiro de Schmarrn (conhecido há séculos como um prato simples de camponeses e facilmente compartilhável, por ser uma panqueca cortada em pedaços).

Independente do que foi decidido entre o imperador alemão e a enciclopédia, sabemos que hoje as palavras Kaiserwetter e Kaiserschmarrn continuam sendo usadas na língua alemã, sem a adição dos nomes dos antigos imperadores.

carta de Kaiser Wilhelm
Fonte: “Aus dem Papierkorb der Weltgeschichte”, de Aaron Aachen. Ed. Jacoby Stuart

Leia a seguir o telegrama traduzido de Kaiser Wilhelm II ao Meyer’s Großem Konversations-Lexicon:

“Estimados senhores da equipe editorial da enciclopédia!

Há algum tempo, um neologismo lisonjeiro circula no estilo vernacular que se baseia em minha pessoa: ‘Kaiserwetter’ [tempo de imperador]. Ele descreve muito apropriadamente uma situação atmosférica formidável, com sol abundante. Peço aos senhores que incluam esta circunstância em sua estimada enciclopédia de conversação como ‘Kaiser-Wilhelm-Wetter’.

Por favor, aproveitem também esta oportunidade para considerar o ‘Kaiserschmarrn’ (uma espécie de panqueca, cozida, depois transformada e rasgada em pedaços), que se tornou conhecido em nosso país e é bastante saboroso, como ‘Kaiser-Franz-Josef-Schmarrn’. Este é um pequeno mas apreciado gesto que devemos ao nosso fiel aliado imperial e real. Informe-me sobre o aparecimento destas inovações e farei com que todos os volumes em minhas numerosas bibliotecas sejam imediatamente trocados.”

O que você achou dessa correspondência excêntrica? Conta pra mim nos comentários!

Fontes:
– “Aus dem Papierkorb der Weltgeschichte”, de Aaron Aachen. Ed. Jacoby Stuart
– Bundesministerium für Land- und Forstwirtschaft (Áustria)
– Vienna Trips

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3 fatos sobre a Neue Nationalgalerie, e por que você precisa conhecer esse museu de Berlim

É difícil escolher qual museu visitar em Berlim – afinal, a cidade tem cerca de 200 deles. Neste post conto um pouco mais sobre por que a Neue Nationalgalerie vale estar na lista de quem quer entender um pouco mais sobre a história da Alemanha e da Europa no século 20 – incluindo temas que afetam nossas vidas até hoje.

1. Dois núcleos de museus para duas Berlins

Por causa do Muro de Berlim, o núcleo de museus da Ilha dos Museus, que fica onde era o lado oriental, foi duplicado para que Berlim Ocidental também tivesse seu polo de museus.

O complexo ganhou o nome de Kulturforum. Com a queda do Muro, os museus estatais dos dois lados se uniram.

A galeria de quadros da Ilha dos Museus ficou como a antiga galeria nacional (Alte Nationalgalerie), focada em arte do século 19, e a do lado ocidental ficou como a nova galeria nacional (Neue Nationalgalerie), focada no século 20.

2. O que você vai ver no museu?

Focar em obras do século 20, especialmente na Alemanha, significa entender como os artistas estavam retratando grandes acontecimentos transformadores da sociedade, como: 

  • a ascensão e o fortalecimento do n@zism0 e as dores da guerra
  • o que era ou não considerado arte pelo regime n4zist@, e a perseguição aos artistas
  • a nova forma de viver nas cidades, que cresciam e aceleravam o ritmo (modernidade)
  • as novas formas de trabalho (mulheres trabalhando fora, tecnologias, foco na parte e não no todo)
  • os movimentos políticos que agitaram a época e a arte usada como propaganda

Os textos do museu são curtos e muito bem escritos, e ajudam a entender esse contexto histórico para relacionar com a arte produzida na época.

3. E o que isso tem a ver com a gente em 2023?

Os eventos representados pela arte exposta no museu têm tudo a ver com a vida que levamos hoje: 

  • a velocidade do trabalho e das cidades
  • o uso crescente das tecnologias
  • os direitos das mulheres e de outros grupos excluídos
  • as disputas políticas por diferentes projetos de sociedade
  • a liberdade de expressão
  • as questões como ansiedade e depressão derivadas de tudo isso

Entender o que aconteceu no passado e como a arte retratou isso é fundamental para a gente olhar por outras perspectivas e pensar sobre o mundo que vivemos e o futuro que queremos construir.

A Neue Nationalgalerie fica na Potsdamer Str. 50 (próximo à Potsdamer Platz).

A entrada padrão (em 2023) custa 14 euros, e é gratuita toda quinta-feira das 16h às 20h e todo primeiro domingo do mês (reserva obrigatória).

Assista ao vídeo que fiz sobre a Neue Nationalgalerie.

Esse vídeo te deu vontade de visitar esse museu? Por quê? Compartilha comigo nos comentários.

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Nada de novo no front: o que é fato histórico ou ficção no filme alemão que ganhou 4 Oscars

Nada de novo no front fato ficção

Indicado a impressionantes 9 categorias do Oscar, o filme alemão Nada de novo no front (Im Westen nichts Neues) recebeu quatro estatuetas na premiação: melhor filme internacional, fotografia, direção de arte e trilha sonora original.

Um filme é avaliado e premiado por diversos requisitos, de questões técnicas a artísticas, já que seu objetivo e prioridade é, ao representar histórias, gerar entretenimento, despertar emoções, e impressionar pela técnica cinematográfica – e não agir como um transmissor de conhecimento histórico preciso. Por isso, não faz sentido sair do cinema acreditando que certo período histórico em que a trama se desenrola aconteceu realmente daquele jeito. 

E como nosso assunto aqui é história, é importante ter em mente que os filmes “de época”, apesar de serem uma ótima forma de nos comover e de gerar interesse e empatia pelas pessoas que viveram determinados eventos históricos, têm um limite quando o tema é verdade histórica. 

Mesmo que os historiadores sejam consultados – e frequentemente são –, é muito difícil que um filme seja de fato fiel a como um evento da história verdadeiramente se desenrolou. Os historiadores normalmente acabam tendo voz mais presente no pensar o figurino, o cabelo, o cenário, a atmosfera e nas orientações gerais sobre o período, mas dificilmente serão uma peça-chave no roteiro final. O roteiro vai priorizar o efeito dramático, e não o fato histórico, embora alguns filmes busquem ser mais realistas do que outros.

O que, então, podemos entender sobre a Primeira Guerra Mundial a partir de Nada de novo no front, e o que não aconteceu bem assim como o retratado?

VERDADE

1. É fato a empolgação – principalmente dos jovens – em participar na Primeira Guerra. Isso acontece por causa dos nacionalismos e das narrativas nacionais construídas desde o século 19 na Europa. Defender a “Vaterland” (em português seria a Pátria-mãe, embora em alemão se fale “pai”) se tornou uma enorme honra e missão em um contexto em que os países europeus disputavam o domínio sobre o continente (e o mundo). Movidos por esses sentimentos de disputa de times e busca de glória e de propósito, muitos jovens pediam a autorização dos pais para se alistar antes da idade legal (19 anos), chegando a falsificar a assinatura dos responsáveis, como é o caso do protagonista do filme.

2. O conflito foi a primeira guerra industrial em grande escala, apresentando aos europeus e ao mundo uma forma de guerrear com máquinas – aviões, metralhadoras, armas químicas (principalmente o gás), tanques – capazes de matar mais, de mais longe e de forma mais rápida, e praticamente abandonando o combate corpo a corpo, no qual se via alguma glória. Isso gera desnorteamento, desconexão, desespero e um sentimento de que a sorte é sua principal aliada (pois sobreviver ou não parece quase aleatório), o que o filme deixa claro nas cenas de batalha.

3. Nada de novo no front é baseado em um romance homônimo de Erich Maria Remarque publicado em 1929, e não é baseado na trajetória de pessoas reais, mas na experiência geral (própria e de conhecidos) do autor na Primeira Guerra. Segundo o próprio escritor, o objetivo foi contar sobre uma geração inteira de jovens alemães destruída pela guerra (física e psicologicamente). Isso é fato histórico: o conflito dizimou milhões de jovens, principalmente da faixa de 19 anos, e pautou a experiência de juventude de toda uma geração. O diretor do filme adicionou em uma entrevista que há também uma conexão com a atual guerra na Ucrânia, já que em ambos os conflitos “os jovens entraram em guerra e foram persuadidos por demagogos, através da propaganda e da manipulação, a fazê-lo com entusiasmo. Hoje é a mesma coisa. Isso não mudou”.

O QUE NÃO É FATO HISTÓRICO 

1. Embora a euforia com a guerra fosse verdadeira, não é crível que os quatro adolescentes estivessem tão empolgados em 1917, quando já estava claro que o conflito não era a maravilha que se pintou. O entusiasmo foi mais comum no início do conflito, mas para o filme era importante que a trajetória dos amigos se desenrolasse em paralelo às negociações do armistício de 1918, e não faria sentido que os quatro sobrevivessem no campo de batalha por 4 anos.

2. A batalha iniciada logo antes do horário do armistício, mas após o anúncio do final da guerra, é, segundo o historiador alemão especialista em história militar Prof. Sönke Neitzel, “nonsense”. “Vamos começar com o pedido geral de contra-ataque duas horas antes da rendição. Isto é, é claro, uma caricatura. É a narrativa do general malvado e dos pobres soldados que são sacrificados. Acho isso simplesmente um absurdo”, disse em entrevista ao veículo alemão MDR.

3. O historiador também chama a atenção para a execução de desertores no filme, o que praticamente não aconteceu na realidade. Segundo ele, isso foi algo amplamente comum na Segunda Guerra, com cerca de 20 mil soldados alemães mortos por deserção, enquanto só se tem notícia de 48 em toda a Primeira Guerra.

4. Talvez o aspecto mais forte da desconexão entre o conflito do filme e o da História seja a humilhação e a queda na moral dos soldados alemães. O fato é que toda aquela empolgação do começo, verdadeira, foi se transformando em uma perda completa de sentido (isso aparece no filme) que levou as tropas sobreviventes a voltarem para casa absolutamente desanimadas, humilhadas, ressentidas, traumatizadas e em silêncio. Quando trata do armistício, o filme foca mais em uma animação dos soldados com o fim da guerra do que qualquer outro sentimento – a questão da honra e do nacionalismo fica apenas com os generais.

5. Mais dois detalhes do filme desbancados pelo professor Neitzel são as diversas armas (tanques, lança-chamas etc.) sendo usadas intensamente e ao mesmo tempo. Elas foram usadas no conflito, mas não dessa forma massiva, simultânea e unilateral. Outra questão são os soldados afrodescendentes que aparecem misturados aos brancos nas tropas francesas. Segundo o historiador, a segregação era forte, e havia sim tropas formadas por pessoas negras, mas elas eram homogêneas e lideradas por oficiais brancos – a mistura não existia.

Nada de novo no front é uma produção da Netflix e pode ser assistido por streaming na plataforma, seja no Brasil, seja na Alemanha.

Fontes: MDR.de, NDR, LeMO (Deutsches Historisches Museum), Slate

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