Nada de novo no front fato ficção

Indicado a impressionantes 9 categorias do Oscar, o filme alemão Nada de novo no front (Im Westen nichts Neues) recebeu quatro estatuetas na premiação: melhor filme internacional, fotografia, direção de arte e trilha sonora original.

Um filme é avaliado e premiado por diversos requisitos, de questões técnicas a artísticas, já que seu objetivo e prioridade é, ao representar histórias, gerar entretenimento, despertar emoções, e impressionar pela técnica cinematográfica – e não agir como um transmissor de conhecimento histórico preciso. Por isso, não faz sentido sair do cinema acreditando que certo período histórico em que a trama se desenrola aconteceu realmente daquele jeito. 

E como nosso assunto aqui é história, é importante ter em mente que os filmes “de época”, apesar de serem uma ótima forma de nos comover e de gerar interesse e empatia pelas pessoas que viveram determinados eventos históricos, têm um limite quando o tema é verdade histórica. 

Mesmo que os historiadores sejam consultados – e frequentemente são –, é muito difícil que um filme seja de fato fiel a como um evento da história verdadeiramente se desenrolou. Os historiadores normalmente acabam tendo voz mais presente no pensar o figurino, o cabelo, o cenário, a atmosfera e nas orientações gerais sobre o período, mas dificilmente serão uma peça-chave no roteiro final. O roteiro vai priorizar o efeito dramático, e não o fato histórico, embora alguns filmes busquem ser mais realistas do que outros.

O que, então, podemos entender sobre a Primeira Guerra Mundial a partir de Nada de novo no front, e o que não aconteceu bem assim como o retratado?

VERDADE

1. É fato a empolgação – principalmente dos jovens – em participar na Primeira Guerra. Isso acontece por causa dos nacionalismos e das narrativas nacionais construídas desde o século 19 na Europa. Defender a “Vaterland” (em português seria a Pátria-mãe, embora em alemão se fale “pai”) se tornou uma enorme honra e missão em um contexto em que os países europeus disputavam o domínio sobre o continente (e o mundo). Movidos por esses sentimentos de disputa de times e busca de glória e de propósito, muitos jovens pediam a autorização dos pais para se alistar antes da idade legal (19 anos), chegando a falsificar a assinatura dos responsáveis, como é o caso do protagonista do filme.

2. O conflito foi a primeira guerra industrial em grande escala, apresentando aos europeus e ao mundo uma forma de guerrear com máquinas – aviões, metralhadoras, armas químicas (principalmente o gás), tanques – capazes de matar mais, de mais longe e de forma mais rápida, e praticamente abandonando o combate corpo a corpo, no qual se via alguma glória. Isso gera desnorteamento, desconexão, desespero e um sentimento de que a sorte é sua principal aliada (pois sobreviver ou não parece quase aleatório), o que o filme deixa claro nas cenas de batalha.

3. Nada de novo no front é baseado em um romance homônimo de Erich Maria Remarque publicado em 1929, e não é baseado na trajetória de pessoas reais, mas na experiência geral (própria e de conhecidos) do autor na Primeira Guerra. Segundo o próprio escritor, o objetivo foi contar sobre uma geração inteira de jovens alemães destruída pela guerra (física e psicologicamente). Isso é fato histórico: o conflito dizimou milhões de jovens, principalmente da faixa de 19 anos, e pautou a experiência de juventude de toda uma geração. O diretor do filme adicionou em uma entrevista que há também uma conexão com a atual guerra na Ucrânia, já que em ambos os conflitos “os jovens entraram em guerra e foram persuadidos por demagogos, através da propaganda e da manipulação, a fazê-lo com entusiasmo. Hoje é a mesma coisa. Isso não mudou”.

O QUE NÃO É FATO HISTÓRICO 

1. Embora a euforia com a guerra fosse verdadeira, não é crível que os quatro adolescentes estivessem tão empolgados em 1917, quando já estava claro que o conflito não era a maravilha que se pintou. O entusiasmo foi mais comum no início do conflito, mas para o filme era importante que a trajetória dos amigos se desenrolasse em paralelo às negociações do armistício de 1918, e não faria sentido que os quatro sobrevivessem no campo de batalha por 4 anos.

2. A batalha iniciada logo antes do horário do armistício, mas após o anúncio do final da guerra, é, segundo o historiador alemão especialista em história militar Prof. Sönke Neitzel, “nonsense”. “Vamos começar com o pedido geral de contra-ataque duas horas antes da rendição. Isto é, é claro, uma caricatura. É a narrativa do general malvado e dos pobres soldados que são sacrificados. Acho isso simplesmente um absurdo”, disse em entrevista ao veículo alemão MDR.

3. O historiador também chama a atenção para a execução de desertores no filme, o que praticamente não aconteceu na realidade. Segundo ele, isso foi algo amplamente comum na Segunda Guerra, com cerca de 20 mil soldados alemães mortos por deserção, enquanto só se tem notícia de 48 em toda a Primeira Guerra.

4. Talvez o aspecto mais forte da desconexão entre o conflito do filme e o da História seja a humilhação e a queda na moral dos soldados alemães. O fato é que toda aquela empolgação do começo, verdadeira, foi se transformando em uma perda completa de sentido (isso aparece no filme) que levou as tropas sobreviventes a voltarem para casa absolutamente desanimadas, humilhadas, ressentidas, traumatizadas e em silêncio. Quando trata do armistício, o filme foca mais em uma animação dos soldados com o fim da guerra do que qualquer outro sentimento – a questão da honra e do nacionalismo fica apenas com os generais.

5. Mais dois detalhes do filme desbancados pelo professor Neitzel são as diversas armas (tanques, lança-chamas etc.) sendo usadas intensamente e ao mesmo tempo. Elas foram usadas no conflito, mas não dessa forma massiva, simultânea e unilateral. Outra questão são os soldados afrodescendentes que aparecem misturados aos brancos nas tropas francesas. Segundo o historiador, a segregação era forte, e havia sim tropas formadas por pessoas negras, mas elas eram homogêneas e lideradas por oficiais brancos – a mistura não existia.

Nada de novo no front é uma produção da Netflix e pode ser assistido por streaming na plataforma, seja no Brasil, seja na Alemanha.

Fontes: MDR.de, NDR, LeMO (Deutsches Historisches Museum), Slate

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