Capas de versões alemã e inglesa do romance que Alfred Döblin escreveu sobre o caso

Há 100 anos um escândalo mobilizou Berlim: duas mulheres foram condenadas ao mesmo tempo pelo envenenamento de seus maridos.

Mas o alvoroço – que rendeu até um livro de um escritor famoso – não era só por isso: Ella Klein e Margarethe Nebbe mantinham um relacionamento secreto entre si e envenenaram seus maridos pois não tinham a permissão para se divorciar e sofriam com abusos físicos, sexuais e psicológicos em casa.

Tudo isso vir a público, na sociedade alemã de 1923, era motivo para um estardalhaço.

A imprensa queria sangue: “Criminosas sexuais em Moabit”, “Degeneradas em julgamento”, “Petição de morte em julgamento de veneno” são algumas das manchetes da época.

O envenenamento era considerado uma “arma feminina”, sádica e calculista, embora estatisticamente o número de assassinatos cometidos com esse método fossem iguais entre homens e mulheres.

A professora Hania Siebenpfeiffer, especialista em crimes cometidos por mulheres no entreguerras, explica que o envenenamento era considerado “uma inversão pervertida do leite materno”, que em vez de nutrir (considerado papel social da mulher), matava.

Berlim já era conhecida como uma cidade progressista nos “anos dourados” (1920), mas só relativamente àquele tempo: ser lésbica era considerada uma “pseudo-homossexualidade”, ou seja, acreditava-se que era um sentimento adquirido temporariamente por mulheres frustradas por não desempenharem o que se acreditava ser seu papel social, como ter filhos.

Enquanto isso, homens homossexuais eram considerados à época dotados de uma doença congênita no órgão reprodutivo que afetava sua sanidade mental (e ainda dizem que a ciência é imparcial!). Por isso tudo, somente a homossexualidade entre homens era tida como crime, punível pelo famigerado parágrafo 175 – muito usado para a perseguição de homens gays mais tarde pelo regime nazista, de 1933 a 45.

Dr. Magnus Hirschfeld. Foto: Welcome Images / CC 4.0

O doutor Magnus Hirschfeld (foto), que liderava o pioneiro Instituto de Sexologia (de onde, 10 anos mais tarde, sairiam metade dos livros queimados na fogueira dos nazistas) em apoio à comunidade LGBT, foi consultado no julgamento, e não pôde alegar a tal da “homossexualidade congênita” por se tratarem de mulheres.

Ele era um aliado e normalmente atuava para reduzir as penas, mas precisava jogar com os valores da época: por isso ele alega “inibições de desenvolvimento e infantilidade” de Ella Klein, e uma “limitação” de Nebbe, que se assemelharia à demência. “Seus casamentos forçados com homens teriam causado uma emergência psicológica.”

No meio do julgamento, diante da postura tímida das duas mulheres e de seu choro frequente, aliado à descoberta e comprovação das brutalidades sofridas pelas duas nas mãos dos respectivos maridos abusadores e alcoólatras, a audiência muda de postura e tende a atenuar a condenação – muitos pressionavam no início por pena de morte.

A sentença foi de quatro anos de prisão para Klein, e um ano e seis meses em uma penitenciária com trabalhos forçados para Nebbe.

O romancista e psiquiatra Alfred Döblin, autor do clássico Berlin Alexanderplatz, também se envolveu com o escândalo que parou Berlim, e escreveu o livro “Die beiden Freundinnen und ihr Giftmord” (título não traduzido para a língua portuguesa, mas que poderia ser entendido como “As duas namoradas e seu assassinato por veneno” – versão em inglês). 

Este foi meu resumo em português da matéria de Matthias Schirmer, da rbb24, sobre o caso de 100 anos atrás. Leia todos os detalhes no texto original (em alemão).

Leia também o post que fiz sobre o Instituto de Sexologia do Dr. Hirschfeld e sobre o tratamento das pessoas LGBT pelo regime nazista.

Fonte: rbb24.de

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