
Não sei vocês, mas quando penso em Gandhi associo imediatamente à paz e à não-violência, método de resistência sobre o qual ele era tão apaixonado. É difícil conectar essa figura pacífica a Hitler, o mais conhecido ditador da história contemporânea, um homem desprezível, intolerante e violento.
Pois o fato é que, preocupadíssimo com o potencial destrutivo de uma outra guerra mundial (que efetivamente se concretizou), Gandhi tomou a iniciativa de escrever uma carta para Hitler em julho de 1939, pouco antes da eclosão do conflito.
“Querido amigo,
Amigos têm me incitado a escrever a você pelo bem da humanidade. Mas eu tenho resistido ao pedido deles, por causa do sentimento de que qualquer carta minha seria uma impertinência. Algo me diz que eu não devo fazer cálculos e que devo fazer meu apelo por tudo o que possa valer a pena.
É bastante claro que você é hoje a única pessoa no mundo que pode evitar uma guerra que pode reduzir a humanidade a um estado selvagem. Será que você deve pagar esse preço por algo por mais valioso que lhe pareça ser? Você vai ouvir o apelo de alguém que deliberadamente evitou o método de guerra, não sem sucesso considerável? De qualquer forma eu antecipo seu perdão, se eu tiver errado ao escrever para você.
Eu permaneço seu amigo sincero,
M. K. Gandhi”
Não se engane: Gandhi e Hitler não eram amigos. Na verdade, eles nem se conheciam. Mas a visão de mundo do líder indiano fazia com que ele se considerasse amigo de todos os humanos, e que propagasse incansavelmente as ideias da não-violência como forma de resistir à opressão (mais particularmente do imperialismo britânico).
Mas se te parece curioso que Gandhi tenha apelado a Hitler, que estava bastante determinado a dominar a Europa e o mundo por meio da guerra e a exterminar grupos inteiros de pessoas (em oposição a chamar todos de “amigos”), o mais engraçado dessa história é que Gandhi endereçou a carta apenas ao “Herr Hitler” (Senhor Hitler). E a correspondência acabou chegando para o meio-irmão do chanceler alemão, Alois Hitler, que tinha um café/bar em Berlim e não tinha qualquer contato com Adolf.
Eis que Alois decidiu responder a carta a Gandhi de uma forma igualmente surpreendente, que você confere na tradução (feita por mim) na próxima página.
“Prezado Sr. Gandhi,
Muito obrigado por sua carta. Em geral, compreendo sua preocupação. Entretanto, parece que eu não sou o Hitler que você está procurando. (Fique certo de que não comecei nenhuma guerra, nem pretendo fazê-lo no futuro). Você provavelmente se refere ao meu meio-irmão Adolf, que é o chanceler do Reich. Infelizmente, não posso colocar uma boa palavra a seu favor neste assunto, pois não tenho contato com meu meio-irmão.
Como já estamos em guerra, não sei se toda a história é ainda importante, mas o endereço correto seria:
Adolf Hitler, Reich Chancellery, Voßstrasse, Berlim, Alemanha.
Atenciosamente,
Alois Hitler”
É engraçado Alois passar o endereço da chancelaria do Reich, um endereço nada ordinário ou desconhecido, a Gandhi. Também é fascinante o tom absolutamente despretencioso e despreocupado da carta (ao mesmo tempo atencioso), como se não se tratasse de temas cruciais e de proporções (e consequências) planetárias.
A carta resposta de Alois faz parte de um livro lindíssimo que ganhei com fotos de correspondências entre pessoas célebres – embora nem sempre admiráveis –, que criam um contraste entre a “pomposidade” dos autores e elementos cotidianos e simples, como falas coloquiais ou assuntos mundanos. O livro se chama “Aus dem Papierkorb der Weltgeschichte”, com cartas compiladas por Aaron Aachen.
Em adição às curiosas cartas, é interessante notar que Gandhi escreveu mais um apelo a Hitler em 1940 (que não está no livro), em que condena as ações do regime até então (diz que elas “degradam a humanidade”), fala da não-violência e compara Reino Unido e Alemanha nazista:
“Não podemos desejar sucesso aos seus braços. Mas a nossa posição é única. Resistimos ao imperialismo britânico não menos que ao nazismo. Se existe uma diferença, ela está em grau. Um quinto da raça humana foi colocado sob o calcanhar britânico por meios que não suportarão escrutínio. Nossa resistência a ele não significa prejuízo para o povo britânico. Procuramos convertê-los, não derrotá-los no campo de batalha. A nossa é uma revolta desarmada contra o domínio britânico. Mas, quer os convertamos ou não, estamos determinados a tornar impossível sua regra pela não-violenta não-cooperação.”
Hoje seria polêmico comparar o imperialismo britânico ao nazismo, porque a elaboração da humanidade sobre os efeitos das duas violências ganhou pesos diferentes, de forma que o colonialismo e o Holocausto atualmente não são vistos com o mesmo julgamento (basta pensar na imagem da família real britânica e na de Hitler). Isso aconteceu a partir de uma construção de memória de vergonha e de condenação moral (que bom) em torno do Holocausto, mas de um questionamento tardio (e que ainda está dando seus primeiros passos) do colonialismo e seus efeitos.
Também é importante lembrarmos do contexto em que Gandhi escreveu o apelo para Hitler, e que o extermínio dos judeus aconteceria principalmente de 1941 a 1945 – embora a violência, a intolerância e o autoritarismo tenham estado presentes desde o início dos nazistas no poder (e até antes disso).
Que tal a comparação de Gandhi, como um homem daquele tempo, entre o colonialismo britânico e o nazismo de 1939? E o que mais te surpreendeu das cartas entre Gandhi e Alois Hitler?
Comenta aqui embaixo se você se interessa por cartas desse tipo e se gostaria que eu publicasse mais posts a partir de correspondências notáveis desse livro.
Fontes:
“Aus dem Papierkorb der Weltgeschichte”, de Aaron Aachen. Ed. Jacoby Stuart
Time.com: https://time.com/5685122/gandhi-hitler-letter/
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